Na nossa casa não há palmadas, e é tão bom!

terça-feira, julho 19, 2016

É mesmo verdade, na nossa casa não há palmadas e é tão bom! Mas nem sempre foi assim…
Desde sempre que sou contra as palmadas. Na minha infância levei muitas palmadas da minha mãe, mesmo muitas. Não julgo a minha mãe porque sei que naquela altura fez o melhor que podia com as ferramentas que tinha. Mas eu sempre quis fazer de maneira diferente. Talvez por isso, tenha dito que não queria utilizar o mesmo método com a minha filha. Só que uma coisa é o que dizemos quando não temos filhos, outra é quando já os temos e muitas vezes as coisas mudam. A minha determinação em não utilizar palmadas manteve-se mas, na prática, perante os momentos desafiantes, com o stress, houve ocasiões onde reagi de forma impulsiva, automática e lá vieram as palmadas. Isto aconteceu três vezes, e lembro-me de cada uma delas como se fosse hoje.
A primeira vez que dei uma palmada à Di, ela tinha aproximadamente três anos. Acordava muito bem-disposta, mas oferecia diariamente resistência na ida matinal à casa de banho. Depois de algumas pequenas conversas, de demonstrações onde expliquei que acordávamos e devíamos ir à casa de banho porque passávamos a noite toda sem o fazer, esperava que a minha filha fosse mais cooperante, mas não. Resolvi não insistir muito mas preocupava-me que ela se descuidasse e ia relembrando-a da importância de irmos à casa de banho depois de acordar.
 Certo dia, depois de dizer inúmeras vezes para a Di ir à casa de banho, ela chama-me, e em pé em cima da cama diz-me com um ar muito desafiador:
— Mamã, mamã eu faço xixi onde quiser!
Depois disto abre as pernas e faz xixi pelas pernas abaixo. Nem queria acreditar! Com os minutos contados e na azáfama matinal antes de ir para o trabalho, senti-me furiosa e lá veio a palmada seguida de um tom bem firme e ameaçador:
— Não voltas a fazer isto, minha menina!
E levei-a para o duche. A Di olhou para mim com um ar desolado, cheia de lágrimas, sem dizer uma única palavra, mas a realidade é que eu estava bem mais desolada do que ela. Afinal onde estava a mãe que não ia dar palmadas? Não estava nada satisfeita comigo própria, nem com a minha forma de agir, foi um ato completamente reativo e sem qualquer consciência. É verdade que a Di não voltou a ter a mesma atitude mas sei que o fez por medo. Eu continuava a sentir que este não era o caminho, por conseguinte com muita compaixão por mim própria, voltei à estaca zero do meu trilho sem palmadas e assim foi durante cinco anos.
A segunda palmada surgiu aos oito anos. Foram inúmeros os dias em que me predispus a ajudar a Di nos trabalhos de casa ou, para ser mais precisa, foram inúmeros os dias em que eu assumi os trabalhos de casa como uma tarefa minha. Cheguei mesmo a perguntar, quando a Di chegava a casa:
— Temos trabalhos de casa, hoje?
O pormenor do “temos” diz tudo sobre o que vou contar a seguir. No final do dia de escola, lá íamos nós para a mesa da sala fazer os trabalhos de casa. Cada dia que passava, eu estava mais empenhada e mais insistente fazendo de tudo para nos “livrarmos” dos “nossos” trabalhos de casa. Quanto à Di, revelava-se cada vez menos proactiva, mais resistente e pouco empenhada, sem querer saber dos trabalhos.
A Matemática era onde as fragilidades mais se notavam devido à atitude da Di, que repetia insistentemente que não percebia nada, por isso era onde surgiam os maiores conflitos. Mesmo assim, eu continuava empenhada em fazermos os “nossos” trabalhos de casa. Depois de largas semanas em que a Di manteve a sua procrastinação e eu o meu empenho, um dia surgiu um exercício de Matemática com várias alíneas bastante semelhantes. Fiz conjuntamente com ela as três primeiras e depois deixei-a autonomamente a fazer as restantes, dando indicações que, apesar de eu estar ali ao lado, ela teria que fazer o resto do exercício sozinha. A resposta que ouvi de imediato foi a seguinte:
— Fazer o resto do exercício sozinha? Nem pensar! O que é que tu ficas a fazer aí ao meu lado? A enfeitar, sua palhaça?
Ceguei ao ouvir aquelas palavras. Peguei na Di e dei-lhe palmadas no rabo até me cansar. É triste, mas foi assim mesmo que aconteceu. Mandei-a para o quarto e fiquei na sala num pranto. Nem conseguia pensar…
Quando o Tiago chegou a casa, ao ouvir tudo silencioso, percebeu logo que tinha acontecido alguma coisa. Quando me perguntou o que se tinha passado apenas respondi que tinha dado palmadas na Di. Nesse momento foi ao quarto ver como ela estava e depois disse-me que esta não era a forma de resolvermos as coisas, na nossa casa. Eu sabia que não. Fui ter com a Di e pedi-lhe desculpa. Disse-lhe que estava muito triste pelo que tinha feito. Ela agarrou-se a mim e disse-me que não voltaria a tratar-me mal e também me pediu desculpa. Ficámos ali abraçadas uma à outra sem darmos pelo tempo passar. A partir desse dia, a Di assumiu a sua responsabilidade pessoal pelos seus trabalhos de casa e começou a fazê-los sozinha, por sua iniciativa e sem eu precisar de dizer, nem perguntar sequer se ela tem trabalhos. Conjuntamente decidimos que, se ela precisasse de ajuda ou se tivesse dúvidas, eu estaria disponível para a ajudar. Há três anos que tem sido assim e tem funcionado muito bem.
Nesse mesmo ano, veio a terceira e última palmada. Digo última, porque acredito que foi mesmo a última.
Uma certa tarde, resolvi ler uma história à Di sobre bruxas, sem imaginar o impacto que esta viria a ter nas nossas vidas. Para quem não conheça, a história é do livro “A bruxa arreganhadentes”. A Di nunca revelou medos, por isso contei a história exagerando na caraterização das personagens, com vozes e sons bem reais. Juntando à minha dramatização as ilustrações assustadoras do livro, o resultado foi um tal pavor de bruxas que até hoje o livro continua guardado e o nome da bruxa, quando proferido, ainda causa arrepios.
Quando a Di começou a verbalizar algum terror relativamente a esta temática, procurei explicar-lhe que as bruxas não existiam e disse-lhe que para tornar a história mais real tinha exagerado na forma como a tinha contado. Mas eis que uma certa noite a bruxa teimava em não desaparecer. Depois de vezes seguidas a ir ao quarto dela explicar que não existem bruxas, já com um olho para cada lado às duas da manhã, grito:
— Acabou-se a brincadeira! A mamã está muito cansada, isto não pode continuar, as bruxas não existem! Não quero ouvir mais nada. Toca a dormir!
Quando ouço outra vez a Di pela casa a gritar que está uma bruxa no seu quarto, lá veio a palmada. Depois disso, a Di calou-se e adormeceu. Já eu, não conseguia dormir e fiquei acordada, muito triste.
Naquela noite disse para mim que não existiriam mais palmadas na nossa casa. O que é que eu estava a fazer? A minha filha com medo e em vez de ter uma mãe compreensiva, que a ajudasse a ultrapassar esta situação, ainda tinha levado uma palmada. A muito custo lá acabei por adormecer, mas determinada a não houvessem mais palmadas na nossa casa.  
No dia seguinte, a Di não proferiu uma palavra sobre o assunto. Eu chamei-a e pedi-lhe desculpa e o que ouvi foi:
— Não faz mal, mamã! Eu sei que mereci levar uma palmada porque tu querias dormir e eu não te deixava.
E eu respondi:
— Faz mal, sim! Ninguém merece levar palmadas, muito menos quando está assustado.
Na nossa casa não vai haver mais palmadas! A Di fez um grande sorriso e respondeu-me:
— A sério? Tão bom!!!
Nesse mesmo dia, conversámos imenso sobre medos e acerca de possíveis soluções para ajudar a Di a ultrapassar esta situação. Também lhe falei dos meus medos e disse-lhe que todas as pessoas tinham os seus medos. O importante é sabermos que eles existem e arranjarmos formas de os ultrapassar. Lemos histórias, fizemos um spray anti-bruxas (que ainda está no quarto da Di) e até “falámos” com a bruxa. Fizemos uma pequena dramatização onde lhe perguntámos porque aparecia à Di e ela “respondeu” que era porque se sentia sozinha. A Di até ficou com alguma pena da bruxa, mas só alguma pois achava que seria mais seguro não se aproximar dela, e tudo bem. Depois destas ações, a Di não voltou a acordar à noite e apenas muito de vez em quando fala na bruxa, mas já sem o terror do passado.
Estes três episódios ilustram o meu percurso na procura de uma forma mais amorosa de atuar em momentos desafiantes. Na Parentalidade Consciente encontrei exatamente aquilo de que andava à procura, inclusive que é possível educar sem palmadas.
As palmadas geram e encorajam a violência, impondo um controlo externo sobre a criança através da força. São um método de disciplina ineficaz a longo prazo, que pode levar a sentimentos de tristeza, raiva, culpa, vingança,… Ao bater numa criança, os pais estão a ceder a um impulso descontrolado, reativo e violento, adotando uma postura de superioridade e não de igual valor, comunicando desrespeito, que promoverá a desconexão. Por sua vez, a criança fica privada do processo interno, muito importante, de gerir o seu mau comportamento e as suas emoções.
Nem sempre é fácil a transição de uma forma de estar e reagir para outra mas, com a prática da Parentalidade Consciente, é possível, gradualmente, ir procurando soluções que respeitem as necessidades e a integridade de cada um. Dá trabalho, mas é muito mais compensador.
Com a minha filha tenho vindo a tentar construir uma relação de afeto e cooperação, onde as palmadas já não têm lugar. Por isso, hoje em dia na nossa casa não há palmadas, e é tão bom!

 Até já!


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